14/07/2009




13-07-2009 Reportagem


A centenas de quilómetros de qualquer tipo de civilização, dois exércitos aguardam pelo recomeço de uma guerra há muito silenciada. De um lado, estão estacionados 100 mil militares marroquinos fortemente armados, protegidos por minas terrestres, arame farpado e um colossal muro de 2500 quilómetros que divide o território do Sahara Ocidental de Norte a Sul. Do outro lado, cerca de 20 mil guerrilheiros Saharaui, munidos unicamente de material rudimentar usado por outras tropas em outras guerras, vivem na esperança de poder voltar a combater em nome da independência de um povo há muito esquecido pelo mundo ocidental.O repórter da A.23, Paulo Nunes dos Santos, foi visitar estes territórios, onde teve a oportunidade de documentar a vida de milhares de pessoas que, devido à invasão levada a cabo por Marrocos há 34 anos atrás, se viram forçadas a abandonar o seu país em busca de uma vida mais segura num dos locais mais inóspitos do planeta.
Texto e fotografias de Paulo Nunes dos Santos.




O CONFLITO QUE O MUNDO ESQUECEU
São sete da manha em Rabouni - um campo de refugiados no deserto Hamada a sudoeste da Argélia – quando, juntamente com Malainin, Ahmed e Hamdi começo a viagem que me levará ao encontro dos guerrilheiros Saharaui da Frente Polisário. Feita uma última paragem, para reabastecer de água e comida para os próximos dias, seguimos então em direcção aos territórios liberados. Três horas depois, chego à fronteira entre a Argélia e o Sahara Ocidental. Ultrapassadas todas as formalidades, seguimos em direcção ao território que, apesar de regularmente monitorizado pelas Nações Unidas, continua a ser considerado zona de conflito.

Sem mapas ou qualquer tipo de instrumento de navegação, a viagem prossegue através de uma paisagem inóspita onde despojos de guerra e minas terrestres são uma presença constante. Ahmed conta-me que atravessou este território muitas vezes. “Conheço-o como a palma da minha mão”, afirma. Quando o conflito contra a ocupação marroquina começou há 34 anos atrás, Ahmed juntou-se à guerrilha. A sua função era transportar tropas e equipamento através do deserto. Fez esta travessia vezes sem conta. Hoje em dia, sem qualquer tipo de referência aparente, sabe por onde é seguro deslocar-se.

Chegados a Tifariti, uma pequena vila parcialmente destruída pela guerra, sou levado para uma casa situada no ponto mais alto da localidade, onde irei pernoitar durante os próximos dias. Malainin explica-me que “este é o quartel de observação da Frente Polisário em Tifariti”, onde vivem cerca de 10 homens que têm como função monitorizar os possíveis movimentos ofensivos das tropas marroquinas estacionadas a menos de 30 quilómetros desta localidade.

“Nesta zona houve muitos combates. Quando Marrocos invadiu o nosso país, milhares de pessoas fugiram das cidades costeiras para se refugiarem aqui em Tifariti”, explica Malainin. “Mas a forca aérea de Marrocos veio e bombardeou a população em fuga, usando bombas de fósforo branco e de fragmentação. Muita gente morreu e a vila ficou praticamente toda destruída”, acrescenta.Junto à entrada do quartel são ainda visíveis destroços das poucas habitações então existentes, bem como alguns tanques de guerra das forcas militares Marroquinas. “A maioria dos Saharaui não sabia conduzir, por isso quando capturávamos os tanques ou jipes Marroquinos, destruíamo-los”, conta Malainin.É de manha cedo quando iniciamos a visita a diversos acampamentos militares espalhados por toda a região.

Após uma hora de viagem, fazemos a primeira paragem no quartel general de Tifariti, onde tenho a oportunidade de conhecer e entrevistar o comandante do segundo batalhão das guerrilhas Saharaui, Aisa Sidahmed. Acompanhado por meia dúzia de seguranças, sou levado para o edifício central do acampamento onde me é servido o tradicional chá de menta. O comandante Aisa, um veterano com cerca de 70 anos de idade, senta-se junto à única mesa em toda a sala e de imediato mostra-se disponível para me contar a sua história e dar alguma informação sobre a actividade militar na região. À semelhança de centenas de outros homens, Aisa juntou-se à guerrilha há 35 anos atrás, um pouco antes de a Espanha abandonar a colonia à mercê de Marrocos e da Mauritânia. “Durante todos estes anos vi muitos companheiros morrer, mas isso só me deu ainda mais forca para continuar a lutar pela nossa independência”, explica o comandante.
Conta-me ainda que os comandantes militares se arrependem de ter assinado um cessar-fogo. “Em 1988, a maioria dos militares estava contra o cessar-fogo, porque na altura estávamos a conseguir liberar partes do território. Mas do ponto de vista político vimo-nos forçados a aceitar porque na verdade somos contra a guerra e a violência. Apenas lutamos para nos defender”. Acrescenta ainda que, na altura “acreditámos no plano de paz apresentado pela ONU, mas 17 anos passaram e nada mudou. A única mudança foi a de Marrocos ter tido a oportunidade de restabelecer as forcas militares e reforçar o muro que divide o nosso território”.

Questionado sobre qual seria então a solução para este conflito, Aisa afirma que “o governo de Marrocos tem ao longo dos últimos 17 anos frustrado todas as vias diplomáticas, por isso acredito que neste momento a única solução é voltar à guerra. Estamos preparados para reiniciar a luta armada a qualquer momento. Temos veteranos experientes e muita gente nova pronta para combater”. Acrescenta ainda que muitos Saharauis a viver na Mauritânia, Mali e em vários países da Europa, “voltariam de imediato ao Sahara para se juntar à luta caso seja necessário”. Quando questionado sobre a possibilidade de estrangeiros integrarem o contingente militar da guerrilha, Aisa responde claramente que “aceitamos de bom grado ajuda politica e logística, mas nunca permitiremos a um não Saharaui que combata por nós. Isto é uma guerra do nosso povo contra o governo imperialista Marroquino”.

Terminada a entrevista e recebida a autorização para visitar mais dois acampamentos situados algures na zona montanhosa da região, seguimos em direcção ao sul. Uma hora mais tarde, chegamos então a um acampamento em nada parecido ao anterior. Aqui, a única construção visível é uma pequena casa feita de barro e palha que serve de alojamento para munições e para as kalashnikov (AK-47) - a famosa metralhadora tornada num símbolo para a resistência e guerrilhas em todo o mundo.Cerca de 25 guerrilheiros aguardam-nos com algum entusiasmo evidente, típico de alguém que não comunica com o mundo exterior há algum tempo. As idades destes homens variam drasticamente. Alguns aparentam ter mais de 60 anos de idade em contraste com outros que, de acordo com o capitão, têm 18 anos. “Aqui todos os homens são voluntários e todos são maiores de idade”, afirma.

Orgulhoso das tropas que comanda, o capitão faz questão de me mostrar o armamento que tem disponível. Os guerrilheiros mais jovens fazem então uma demonstração do uso dos 4 ou 5 jipes apetrechados com artilharia anti-aérea da era Soviética, seguido de uma visita guiada aos tanques de guerra que também são provenientes da ex-URSS e de uma lição em manuseamento das famosas AK-47. Terminada a “parada” militar”, sou convidado a visitar uma pequena caverna que é não mais do que a casa destes homens. As paredes interiores estão todas pintadas com mensagens de apoio e respeito pela Frente Polisario e pelo povo Saharaui. Num canto, um dos guerrilheiros prepara um chá e pede-me que me sente para podermos conversar. Explicam-me que têm vivido ali desde o início da guerra, porque são partes do deserto que as tropas marroquinas não conhecem muito bem. “As cavernas protegem-nos do sol, do frio e do inimigo”, acrescenta.

Pergunto se existe alguma diferença de atitude entre os veteranos e os mais novos, ao qual me respondem que “os voluntários mais novos são como nossos filhos, são treinados pelos veteranos. São como nós éramos quando a guerra começou, a única diferença é que esta nova geração está mais informada, têm mais educação”. “Mas são todos bons guerrilheiros”, acrescentam. Em tom de brincadeira, pergunto de que é feito um bom guerrilheiro? O capitão responde que “para se ser um bom guerrilheiro temos de nos mentalizar de que não vamos voltar, de que vamos morrer em combate.”

O sentimento geral que estes homens transmitem é de que estão conscientes da superioridade militar de Marrocos mas, no entanto, têm a convicção de que sairiam vencedores caso os combates sejam retomados, porque as razões pelas que lutam são superiores às do inimigo. Para os guerrilheiros Saharaui, esta guerra é pela liberdade e independência do seu povo, contra um governo invasor que força as suas tropas a lutarem somente em nome de uma ideologia imperialista. Todos os guerrilheiros com quem falei (à semelhança da população civil), afirmam não ter quaisquer sentimentos negativos pelo povo marroquino, mas mostram-se dispostos a lutar e sacrificar as suas vidas para que as gerações futuras possam viver livres e independentes na terra que por direito lhes pertence.

Fonte: http://www.a23online.com/portal/?p=3402