Viagem ao Saara Ocidental |
Quando estive no deserto |
AUTOR: Atenea ACEVEDO Traduzido por Cristina Santos |
A sonoridade da palavra Saara tem a suavidade esponjosa das dunas, a tirania do sol, o azul profundo de um céu salpicado de estrelas, a visão fantástica do infinito. Nela também cabem a guerra,o espólio, a precariedade, o desterro e a injustiça. A força irreprimível dum povo faz que há trinta e três anos dizer Saara também é dizer resistência, anseio, temperança. Chegar a Dakhla, um dos acampamentos de refugiados saarauís na Argélia cujo nome corresponde a uma das suas cidades sob a ocupação militar marroquina, é uma grande odisseia. É como se as peripécias se conjugassem para pôr à prova a determinação e a dureza da pele da viajante, apenas para recompensá-la com imagens e emoções irrepetíveis. As horas num avião charter, que mais parece uma camioneta, alugado por um grupo de conhecidos e a massagem cruel que me oferece o transporte todo-o-terreno desde Tindouf são o preço a pagar para ver o primeiro amanhecer no deserto. Os meus olhos deixam de espreitar e abrem-se como leques, embruxados perante o vigor do fogo que se levanta com o impulso de um deus absoluto. Não se fecharão por muito tempo, apenas para dormitar na jaima ou no gueton quando o corpo se nega a acompanhar a minha necessidade de recorrer e recordar tudo. Como uma ordem a realidade dos acampamentos vem ao meu encontro. A reflexão imediata evoca o que aprendi a entender como “comodidades” ou “vida moderna”, eufemismos para uma torneira, uma tomada eléctrica, uma rua alcatroada e uma porta cheia de trincos. Aqui, onde o tempo adoptou a forma do horizonte ilimitado, basta um instante para reconhecer esses objectos peculiares como veículos de esbanjamento e desperdício. Precisamos de pouco e queremos tudo, e não importa se no caminho atropelamos ou arrebatamos. O povo saarauí, imerso na brutalidade da ocupação de um lado do maior muro do mundo ou no rigor do exílio do outro, sabe que a sua sobrevivência depende do sentido de colectividade. Os dias e as noites em Dajla levam a uma reflexão mais detalhada sobre aquilo que no meu mundo se perdeu e que não é pouco: a noção de comunidade, a motivação para nos reconhecermos noutras humanidades, o ânimo de rebeldia, a celebração da vida por si mesma. Tal como as centenas de pessoas que estão de passagem, desfruto do ritual do chá, do abrigo de uma família, das bondades do turbante, da luz que pressagia o amanhecer, da sábia cadência dos dromedários. A tranquilidade de cada momento obsequia uma aprendizagem. Oiço atenta a saudação saarauí, um intercâmbio de perguntas sobre o bem-estar da família e do gado, sobre os caminhos percorridos e a desejada presença de água num terreno sem dono. Trata-se de algo mais do que uma tradição de errantes, aquele diálogo útil para traçar a própria rota e atenuar as probabilidades de perecer ou perder-se em caminhos avermelhados: ao preservar a saudação que distingue o seu espírito nómada o povo saarauí assinala a sua convicção na vitória e persegue a teia da sua identidade legendária. A imaginação reina no Saara, espaço ideal para a organização delirante de um festival internacional de cinema. Projectar filmes na imensidade de um mal chamado “nada” não só refresca os sentidos marcados por uma paciência que se esgota. Que melhor meio para se aproximar a outras realidades e apresentar a própria que a linguagem audiovisual, insígnia dos nossos tempos? Por isso o festival oferece seminários de documentário, fotografia, edição, som e rádio. Por isso está-se a trabalhar na construção da primeira escola de cinema e acaba de se inaugurar as transmissões da televisão saarauí. Tudo serve para fortalecer a trincheira da dignidade e defender o sorriso desta gente que não pede permissão para ser e empunhar a sua bandeira. É normal que a perspectiva se apure depois de viajar a um acampamento saarauí, um lugar onde o inepto pulso humano supera adversidades inimagináveis, uma paisagem singular num planeta onde o pensamento único eliminou todos os sinais de originalidade e as cidades e as pessoas são cada vez mais fastidiosamente parecidas. Talvez assim se explique o sorriso que nasce nos meus lábios quando falo do Saara e de um povo que tem os olhos postos no futuro, os pés enraizados na história e asas a crescer nos braços. Mas a minha fascinação não vale a ferida deles. Por muito que aqueles que chegam de longe precisem de um tratamento contra o consumismo e a superficialidade, por mais intensa que seja a experiência, ninguém deveria ter de viver a inventar maneiras de gritar ao mundo a sua tristeza e o seu direito à justiça. Junto a minha voz ao coro que exige liberdade para o Saara Ocidental JÁ. Fonte: Cuando estuve en el desierto |
30/06/2009
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