15/04/2009

Temos de guardar o «xei» nas «haimas» da nossa alma

Temos de guardar o «xei» nas «haimas» da nossa alma

Comer uma «francesinha» no deserto seria impossível, disse com os meus botões... enquanto o Luís aprendia árabe, o Victor admirava a Via Láctea entre duas passas de «American Legend», um genuíno cigarro americano totalmente fabricado na Mauritânia, a Susana escavava nas suas mochilas à procura de uma milagrosa pomada e o Baguinho aprendia uma canção saraui.

Comer uma «francesinha» é impossível no deserto insistia eu numa luta incessante com os meus pensamentos diabolizados pela miragem de um «fino» bem tirado. Entretanto, o Baguinho já dançava os primeiros acordes da canção aprendida, Mina e Suelga batiam palmas ao ritmo dos risos das crianças. A nossa haima era como todas as outras, onde todas as almas se encontram numa haima só, portadoras de um visto carimbado com sorriso de felicidade espontânea.

Não, não havia «francesinhas», muito menos «finos» bem tirados! Mas havia um encontro marcado na tenda do Mário onde esperava uma açorda alentejana abençoada por bacalhau. Não era uma miragem ou uma originalidade lusitana, nem tão-pouco uma aberração nacionalista, mas sim uma forma bem nossa e genuína de fazer uma vénia a quem, sem nada, nos recebera como reis num reino efémero de sentimentos nobres e puros.

Entre um sorriso trémulo de simplicidade a Ângela criou uma amostra do nosso universo embebido numa sêmea cozida de paradoxos de calor e frio do deserto. Coentros, alho, bacalhau, que o wali chamara «bacalao», acompanhado de uma excelente colheita de 2009 de Coca-Cola e Fanta de maçã morna. Sem nada ser, foi tudo genuinamente.

Entre cantares distorcidos com letras que a memória insiste em não esquecer, acompanhados de sumos que simulavam «tinto» levantaram uma névoa do cheiro de sons com os quais pretendíamos presentear os passageiros da areia agora forçosamente sedentários no lado oriental do Sara Ocidental. Sabiamente o Rato saltitou com sua secreta arte provocando hilariantes e sinceros risos escoltados pelos «ui-uis» das deusas do «xei».

Não, não havia «francesinhas», nem vimos as costas do Bojador. Mas ficamos almas cativas de um cativeiro efémero onde os diferentes se encontraram em terra áspera e mutuamente compreendemos que não há diferença entre dois sorrisos trémulos, duas palmas batidas, risos rasgados e uma açorda alentejana de sabores que também lembram o Norte.

A festa acabou. Regressamos num falso silêncio à Haima de cada um, que já dizíamos «nossa». Que diferença há entre os povos quando a dor é comum? Perguntaram todos sem que algum fizesse a questão. Nenhuma. Responderam todos em coro para si mesmos. O silêncio nunca é o pior quando regressamos de uma açorda no deserto, ao silencio que deixamos quando regressamos a casa ignorando aqueles que nos consagraram uma parte de eles mesmos.

Crime é deixarmos apenas o odor de uma açorda no deserto sem trazermos o aroma saraui para casa. Temos de guardar o «xei» nas «haimas» da nossa alma.

Abraço a todos e beijos a todas

Rui Neumann

4 comentários:

  1. Uma bela maneira de recordar o "sabor" do deserto e o povo esquecido que nele habita e sobrevive na esperança de voltar um dia a alcançar o mar e ver novamente o Bojador.
    Tudo isto claro polvilhado por um pouco do sabor da nossa terra, que levamos sempre connosco.

    Migas

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  2. Não me apercebi que a açorda tinha sido tão inspiradora. Deve ter sido porque cheguei atrasada! Acho que todos nós trouxemos um pouco de lá. Bem...uns mais que outros! Já estou a por em prática a divulgação da causa sauri, falando com vários funcionários da minha Câmara e alguns deles já estão a fazer pesquisas na net sobre o assunto. Espero que não seja na hora de serviço...

    Hortensia

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  3. Afinal trouxemos um Saha-Rui connosco! Espero que o pessoal do Norte lhe dê muitas francesinhas (vegetarianas) até ele voltar para os braços da "Mamãe África"!

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  4. o sabor amargo e doce do deserto veio para ficar. confesso-vos a minha maior saudade: deixar-me estar na haima de dajla, com um pé no tapete e outro na areia do deserto, doce como os olhos da pequena Aziza. andar descalça e comer do mesmo prato. partilhar o mesmo chão. não é lirismo, acreditem-me. a tristeza nos olhos da mãe Samira não me sai da cabeça. o jogo de metáforas do guerrilheiro Lebib do 27 de Fevereiro e a sua altivez, a inconsciência e orgulho da jovem Seniya, as palavras de força e integridade do homem da escola de educação especial (o sorriso). as armas com que o povo saharaui se constrói: dignidade, solidariedade. educação, saúde... horra saharaui! a luta continua. viemos com as mãos cheias e com uma responsabilidade gigante nos braços. não percamos isto. não são só palavras. um imenso bem haja ao cppc!

    abraço forte para todos!
    marta

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