22/06/2009

Saharauis: o povo que o mundo esqueceu



1-06-2009 Reportagem




São quatro da manha quando finalmente chego ao destino final - o deserto Hamada a sudoeste da Argélia. No aeroporto de Tindouf, uma cidade construída em redor de uma base militar, aguarda-me Malainin Lakhal, um jornalista Saharaui representante da Frente Polisario que será o meu guia, tradutor, guarda-costas e excelente fonte de informação durante a minha visita a região. Após ultrapassadas todas as formalidades e burocracias comuns a uma zona de conflito, é tempo de mudar de transporte e iniciar as duas horas de viagem de jipe pelo deserto guiados apenas pela forte luz do luar. É durante esta viagem que tenho a oportunidade de iniciar o meu trabalho ao pedir a Malainin que me fale um pouco de si. Fotografia e texto por Paulo Nunes dos santos





Á semelhança de mais de 200,000 Saharauis, Malainin viu-se forçado a abandonar a sua terra natal, deixando para trás os seus pais, irmãos, mulher e filhos. “Passaram já 17 anos desde a última vez que vi os meus filhos”, conta Malainin. “Era estudante universitário em Agadir (Marrocos) quando me envolvi em manifestações pela liberação do Sahara Ocidental. Como Saharaui é o meu dever lutar pela independência e liberdade do meu povo”.
Malainin, juntamente com outros activistas, foi um dos elementos envolvidos na Intifada de 1992 no sul de Marrocos e zonas ocupadas do Sahara Ocidental. Nessa mesma altura foi capturado, espancado e torturado pela polícia secreta marroquina. “Este sou eu nos dias a seguir a minha captura”, diz Malainin ao mostrar-me uma fotografia de um rosto maltratado e praticamente desfigurado. Contínua, explicando que enquanto aguardava julgamento, teve a oportunidade de fugir. Juntamente com dois companheiros atravessou o deserto, durante uma semana a pé, desde Laayoune (cidade militarmente ocupada e controlada por Marrocos) até aos campos de refugiados na Argélia. Durante esta viagem teve de atravessar o famoso muro construído por Marrocos, que divide o Sahara Ocidental de norte a sul. “Não foi fácil, porque tivemos de atravessar as zonas fortemente minadas sem que as tropas marroquinas se aperceberem”. Nos anos que se seguem, Malainin é julgado à revelia, e condenado a nove anos de prisão. Desde o dia que deixou Laayoune nunca mais teve a oportunidade de voltar a ver a sua família e amigos que deixou para trás.


Fascinado pela história de Malainin, a viagem até ao campo de refugiados passa num ápice. “Este é o 27 de Fevereiro”, informa-me Malainin. Á semelhança de todas as outras habitações neste campo, a construção é rudimentar. As casas são pequenas, feitas de tijolos de lama e palha, não existe água canalizada nem rede de esgotos. Quando as ocasionais chuvas torrenciais assolam esta inóspita parte do Sahara as inundações destroem-nas por completo, rotina que obriga a uma (re)construção sistemática desde a 34 anos.


Após duas horas de descanso, despertado pelo calor abrasador típico do deserto e pelas moscas que insistem em sobrevoar a minha cara, segue-se o pequeno-almoço e o primeiro contacto com fantástica hospitalidade do povo Saharaui. Café, pão fresco e doce de pêssego são-me servidos numa mesa tipo tabuleiro onde o tradicional chá de menta está também a ser preparado. Com a ajuda de Malainin tento obter um pouco de informação sobre a família anfitriã. É então que me contam a historia de Elkeihel, o dono da casa, activista e poeta Saharaui que, á semelhança de muitos outros, passou a sua infância nos territórios ilegalmente ocupados por Marrocos e viveu de perto a opressão e tortura do regime de Rabat.
Filho de uma revolucionária, Elkeihel passa a maior parte da sua vida na clandestinidade e ao fim de 12 anos consegue finalmente reunir-se com a sua mãe, avó e irmãos nos campos de refugiados. Hoje em dia Elkeihel trabalha como jornalista para a Radio Nacional criada pela Frente Polisário nos campos de refugiados, e tornou-se um símbolo vivo da resistência Saharaui.


De 27 de Fevereiro parto para outro campo, Rabouni, onde os edifícios dos ministérios do governo da Republica Democrática Árabe Saharaui estão estabelecidos. Apesar de ser o campo onde está a sede do governo em exílio, Rabouni tem o mesmo aspecto que os outros campos. Algo que me chama á atenção é o facto de que independentemente do cargo, posição ou importância das pessoas nestes campos, toda a gente vive nas mesmas condições. Pude confirmar este facto, quando uns dias mais tarde sou convidado a casa de Bouhabini Yahia, o presidente do Crescente Vermelho Saharaui (Saharawi Red Crescent - SRC) para lhe fazer uma entrevista. A sua casa é e contem exactamente o mesmo que as outras casas das famílias onde pernoitei e visitei.


No total existem 5 campos de refugiados: 27 de Fevereiro, Rabouni, Smara, Dajla e Laayone. Entre eles, estima-se uma população de 200 mil pessoas.
Construções rudimentares, as improvisadas vedações para as cabras, as ocasionais antenas parabólicas, os pequenos painéis solares e escassos depósitos de água, completam a paisagem árida destes campos. Negócios são quase inexistentes, e as poucas lojas que existem servem apenas para abastecer a população com os mais básicos dos produtos. Em cada campo existe também um jardim colectivo que, devido a escassez de agúa, permite apenas uma produção mínima que é distribuída por hospitais e população em geral.


Os refugiados que estão classificados em duas categorias - Vulneráveis (75 mil) e Muito Vulneráveis (125 mil), dependem unicamente da ajuda humanitária internacional que, segundo Bouhabini Yahia presidente da SRC não é suficiente para garantir as necessidades básicas de todos. ” Toda os refugiados nestes campos dependem de ajuda humanitária. Todos sem qualquer excepção. Mas Infelizmente estão muito longe de receber ajuda suficiente”, afirma. No entender de Bouhabini as Nações Unidas são em muito responsáveis por esta situação, afirmando que “não levam a serio a situação em que esta gente vive”. Acrescenta ainda que “não é aceitável que as Nações Unidas classifique estes refugiados com um estatuto de Emergência desde que os campos foram criados”. O facto de não serem classificados como refugiados não permanentes significa que a quantidade de ajuda humanitária recebida não vai ao encontro das necessidades reais da população.
Existe no entanto, uma forte participação da comunidade civil espanhola que em geral, e ao contrário do governo (o principal responsável pelo conflito, pelo facto de ter abandonado a ex-colonia a mercê da politica imperialista dos países vizinhos), reconhece o direito a um estado independente e sente a obrigação moral de apoiar os Saharauis. São várias as Organizações Não Governamentais (ONG) espanholas com um papel activo na ajuda aos Saharaui, com acções que vão desde a distribuição de água potável á implementação de escolas e acções de formação técnica de varias vertentes.


De caminho ao sul, é altura de visitar o campo de Smara, o maior e mais populacionado da região. Zorgan, um outro representante da Frente Polisário, leva-me numa visita guiada ao campo, passando pelo hospital, escola, jardim e pelo único cemitério da região. Na realidade, Smara não é mais do que os outros campos por onde passei, um aglomerado de casas feitas de tijolos de barro e com telhados de zinco, estradas de areia, depósitos de água e muitas vedações para cabras.
Terminada a visita, Zorgan faz questão que o acompanhe a sua casa e me junte à família durante a hora de almoço. Aceito o convite sem excitações. À chegada sou recebido com o maior dos entusiasmos pela mulher e filhos de Zorgan que me guiam até ao compartimento onde o tradicional chá de menta é imediatamente servido, seguido de uma caldeirada de camelo, batatas fritas e feijão. A seguir ao almoço, Zorgan conta-me um pouco da sua história de vida e paixão pela causa Saharaui. “O facto de ter perdido um braço quando era criança, não impediu de (aos 17 anos) me juntar a guerrilha e lutar pelo meu povo”, diz Zorgan com um orgulho evidente. Quando lhe pergunto se voltaria a fazer o mesmo, afirma com convicção que “se a guerra recomeçar estarei pronto para dar a minha vida pela independência e pela liberdade dos meus filhos e gerações futuras”. É altura de descansar por umas horas antes da longa viagem até ao próximo campo.


Após várias horas de viagem, debaixo de um calor intenso e coberto de pó e areia, chego a Dajla, o mais isolado de todos os campos. Dajla, construído praticamente nas dunas do Sahara, é disperso, com casas ainda mais frágeis do que nos outros campos. Malainin explica-me que o único poço de água existente no campo esta agora praticamente seco, e o minúsculo jardim que durante vários anos existiu junto a esta fonte de água tornou-se impossível de manter. A única água a que os habitantes de Dajla têm acesso, é distribuída por camiões cisterna uma vez por semana. O difícil acesso e longa distancia a percorrer torna impossível um abastecimento mais regular.


Num esforço para minimizar o isolamento dos refugiados estabelecidos em Dajla, as autoridades decidiram desde a dois anos atrás usar este campo como palco para o FISAHARA - um festival internacional de cinema organizado para os refugiados Saharaui. Este festival, que esta agora na sua sexta edição, foi criado com o intuito de proporcionar aos refugiados a participação em actividades culturais e acções de formação a nível cinematográfico e escrita criativa, e implementar uma plataforma de divulgação da cultura tradicional Saharaui. Este projecto, que conta com a participação e apoio de nomes importantes no mundo das artes a nível internacional, tenciona também alertar a comunidade internacional para as condições de vida a que os Saharaui estão sujeitos.
Com todo o ambiente de festa proporcionado pelo FISAHARA é fácil esquecer as dificuldades a que este povo está sujeito desde a 34 anos. Mas são acções como esta que mantêm viva a esperança e o sonho de um dia poderem voltar a sua terra natal, de verem unido o território que por direito lhes pertence.


[Continua...]

http://www.paulonunesdossantos.com/

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